RESENHA – A SOCIEDADE EM REDE MANUEL CASTELS

Publicado em http://veredasdahistoria.kea.kinghost.net/edicao3/res.1.pdf


 

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – a era da informação: economia, sociedade e cultura, volume I. Trad. Roneide Venâncio Majer e Jussara Simões. São Paulo: Paz e Terra, 1999.


 

POR Daniel Santiago Chaves*


 

Estava derrubado o muro do século XX na Europa, terminara a Guerra Fria e então começava um novo período para o homem contemporâneo do imediato século XXI. Os alertas: a geopolítica mundial varia, exaustivamente, a sua geometria; a interdependência econômica global é um dado de realidade incontestável; o bem-estar social enquanto Política de Estado parece, apenas, uma nostálgica lembrança do passado; surge o hiper-crime e o hiper-terror, e a segurança se torna cada vez mais privatizada; é contestado todo tipo de patriarcalismo, com a entrada definitiva da mulher no mercado de trabalho, este, por sua vez, mais individualizado que nunca.

É nesse contexto que Castells, sociólogo espanhol cuja carreira nasce com a geração de maio de 1968, escreve a sua trilogia "A Era da Informação". Comentaremos aqui os aspectos e idéias centrais deste volume I, cujo lançamento trouxe grande impacto, sendo considerado pelo conselheiro de Tony Blair, Anthony Giddens, como uma obra comparável à força dos intentos de Max Weber e Karl Marx para compreender a era industrial. Destaca-se a multifuncionalidade deste trabalho, seja útil como ponto de encontro para debates de diferentes disciplinas acadêmicas, ou ainda entre diretores, chefes-executivos, analistas e toda gama possível de interessados em compreender as bases lógicas de um mundo cada vez mais indisciplinado e inconstante.

Após uma carreira de 20 anos dedicada ao estudo da sociologia das metrópoles por um prisma marxista, Castells caminha com o seu tempo e sintomaticamente abdica da maior parte das suas premissas e questões concernentes a essa tendência teórico-metodológica. Representando essa guinada que nortearia fortemente a tendência ideológica da virada do milênio, Castells se dedica a estudos sobre tecnologias de comunicação e informação (Technologies of Communication and Information, TCI's). Com fôlego renovado, A sociedade em rede traz uma avalanche de redefinições para os parâmetros analíticos das ciências humanas e econômicas. Com forte ineditismo, a informação é situada na sua teoria como o traço que desenha uma revolução tecnológica que a subsidia e assiste, em mais uma ruptura histórica; porém, jamais assistida em tal velocidade, o que dificulta a apreensão e seleção dos seus aspectos pelos indivíduos.

Calcado em um entendimento sobre o saber em sentido francamente aberto, Castells convida-nos para surfar na big wave do conhecimento contemporâneo em open source. Se a sociedade é globalizada, peremptoriamente, o espaço não define os seus fluxos: são os fluxos que definem o espaço. Ao compreender, às portas do século XXI, a dimensão global inédita desses fluxos de capital, de pessoas, do crime, da política e, mais importante, da tecnologia e da informação, o autor influenciou novas noções decorrentes de uma reestruturação organizacional da sociedade, que viriam a se tornar chaves explicativas para a contemporaneidade.

A inovação das teses de Castells é o conceito de Estado-Rede. Para o autor, o mundo mudou, desfazendo-se a estratificação vertical que caracterizaria o estado das coisas no mundo o qual conhecíamos até pouco tempo atrás, rumo a uma tendência de horizontalidade nas relações sociais, econômicas e culturais entre os homens. Nessa nova lógica organizacional, localizada em torno do espaço de fluxos mais diversos, apresentam-se redes flexíveis e moles ao invés de cadeias verticais duras; nós tenazes ao invés da concentração da informação e do desenvolvimento em centros rígidos de agrupamento. O conceito definido por Castells indica, nesse novo estado de coisas, princípios como "desterritorialidade", autoridade institucional compartilhada, assimetria reconhecida, relações inter-nodais, descentralização articulada de gestão, flexibilidade no gerenciamento, subsidiariedade e horizontalidade.

Decorre da concepção de Estado-Rede a idéia de que é possível, em termos práticos, a estruturação do não-estruturável, preservando a inovação e propiciando os saltos de desenvolvimento, ainda que colocando à prova as formas de controle do mundo como dispúnhamos antes.

Ainda, é redefinida a identidade, elemento tão fundamental quanto a informação para esse mundo novo. Invidualizada, coletiva ou atribuída, esse princípio organizacional de atuação/reconhecimento social construtor de significado se afirma como um dos últimos salva-vidas diante do acelerado reordenamento organizacional deste novo mundo. Agora, o Ser lida com a Rede em uma relação bipolar, oposta; associativa e dissociativa. É uma questão central para indivíduos, corporações e coletividades entender onde situam-se os nós dessas redes sobrepostas, para transformar – ou melhor, inovar e desenvolver. A cultura, termo cada vez mais polissêmico, apresenta-se como uma base/conjunto de atributos cada vez mais ampla e operacionalizada com as redes. A vida torna-se produção, cada vez mais.

Sobre a tecnologia, Castells tece comentários pertinentes à descrição histórica dos últimos 40 anos de desenvolvimento. Reportando rejeição ao determinismo tecnológico – usando as palavras de Melvin Kranzberg, "a tecnologia não é boa, nem ruim, nem neutra" -, apresenta-se a própria sociedade como a matriz das transformações técnicas, e assim, sendo o determinante do desenvolvimento tecnológico. É no seio cultural e informacional das sociedades, com o suporte das ferramentas produzidas, que surge a ponta de lança da tecnologia. Os saltos de desenvolvimento tecnológicos estão diretamente relacionados à possibilidade de uso e aplicação flexível entre os consumidores comuns, e não somente entre clientes específicos e seletos. Castells comenta que poderia falar da telefonia, por exemplo, mas a internet é, sem dúvida, o melhor exemplo.

Antes, a internet era um instrumento restrito primeiramente ao ambiente militar, que a gestou e deu fundamental pontapé inicial de viabilidade; depois, o salto evolutivo fundamental: no final dos anos 70, se disseminou, de forma viável e menos restritiva, o uso/contribuição de usuários, com descobertas criativas e aplicações modulares sendo compartilhadas em redes colaborativas. Cabia coordenar e pinçar esses sucessos individuais, e juntar as pontas das redes em uma rede das redes: "a difusão da tecnologia amplifica o seu poder de forma infinita, à medida que seus usuários apropriam-se dela e a redefinem". Acelera-se a locomotiva das transformações.

Entre outros elementos, situavam-se nestes deslocamentos assinalados por Castells como o fim do industrialismo, superado positivamente pelo informacionalismo. Com a reestruturação da década de 90, baseada em desregulamentações e privatizações, fim do contrato social com um distanciamento ainda maior entre capital e trabalho, seriam as metas: i) aperfeiçoar a produtividade; ii) aprofundar a lógica capitalista da relação capital/trabalho, iii) globalizar a produção e iv) direcionar o Estado ao seu limite de competitividade. Nosso autor sugere que, talvez, o capitalismo não possuísse a força que hoje tem sem essa superação. Difícil prever, mas ainda mais difícil é não crer.

Nesse sentido, comentamos o terceiro pilar de Castells: a economia, cada vez mais informacional e global. Global, pois está vinculada a escalas globais de produção; informacional, pois a sua órbita é coordenada pelo processamento e gerenciamento de informações, em maior ou menor intensidade. A nova economia em rede tem a produtividade como um dos seus elementos centrais, com a agilidade dos fluxos de informação proporcionando menos tempo entre inovação e produtividade, ainda que isso custe tempo precioso na decisão das suas aplicações. Surge a globalização com uma face seletiva e desigual, conformando-se sobre buracos negros de ausência e miséria total, por vezes conviventes, como zonas privilegiadas na Indústria da Tecnologia (IT). É o paradigma "A-1 de Hyderabad: rica, populosa e dual.

Na esteira da nova economia informacional, examina-se o que é a empresa em rede. Castells enumera, rapidamente, valores inexoráveis dessa nova formação: cultura organizacional flexível sem as velhas burocracias verticais centralizantes, preservando a autoridade no convívio com a produtividade; caráter multifuncional do corpo técnico, apto a lidar com as novas tecnologias da informação em rápida difusão e com os constantes movimentos de "produção enxuta; deve estar atenta às incertezas desses movimentos, que tendem a deslocar-se da produção em massa para a produção flexível. Em suma, surge a empresa em rede como alternativa maleável para as intempéries do mundo contemporâneo, com sete características fundamentais: 1) organização por processo, não por tarefa, 2) horizontalidade hierárquica possível, 3) gerenciamento em equipe, 4) desempenho certificado pelo cliente, 5) recompensa por desempenho e produtividade, 6) expansão/consolidação das redes com clientes e fornecedores, e 7) reciclagem constante dos funcionários, com atualizações sistemáticas.

Ao final, poucos resistem ao ensejo recomendatório envolvendo A sociedade em rede. De forma sedutora, Castells renuncia ao niilismo, ao ceticismo e à descrença política do "fim da história"; ao contrário, talvez esta nunca tenha caminhado para o futuro com tanto vigor e rapidez. Por querer, envolvemos-nos sem cautela nas redes e nas possibilidades inéditas de inovar e reconstruir paradigmas tecnológicos e informacionais. Seduz-nos não viver em um sistema, mas visitar as múltiplas janelas abertas de um mundo flexível em eterna reconstrução.

*Mestre em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente / UFRJ . Contato: daniel@tempopresente.org

Um comentário :

Anônimo disse...

muito bom! me ajudou muito