A política de desenvolvimento do Brasil Rural em debate

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A Política de Desenvolvimento do Brasil Rural (PDBR) leva em consideração o contexto atual do espaço rural do país, marcado pela dualidade de projetos de desenvolvimento. Assim, observa-se que em contraposição ao padrão histórico de desenvolvimento rural – representado pela concentração da terra e pelo domínio político das oligarquias agrárias – está em curso a construção de uma nova proposta fundada nas diferentes dimensões da sustentabilidade e ancorada nas distintas formas de produção e de reprodução da vida e organização dos atores sociais rurais. O artigo é de Lauro Mattei.

Lauro Mattei (*)

A construção da Política de Desenvolvimento do Brasil Rural (PDBR) é um processo em curso desde o ano de 2005, tendo sua visibilidade explicitada durante a realização da Primeira Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário realizada no mês de junho de 2008, na cidade de Olinda (PE). Neste evento, que contou com a presença de aproximadamente 1.300 delegados de todas as regiões e estados do país, foram debatidas as linhas estratégicas de um novo projeto para o meio rural a ser discutido com o conjunto da sociedade brasileira ancoradas na ideia central de que essa proposta deveria se pautar pelo princípio inclusivo, ou seja, "de um rural com gente e com vida digna".

Após a realização da Conferência, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) passou a debater o papel do rural no desenvolvimento nacional, bem como a estruturar uma proposta de política que contemplasse conceitos, princípios, diretrizes, objetivos, eixos estratégicos, programas de ação, mecanismos de financiamento e o marco regulatório da política. Essas atividades dominaram a agenda de trabalho do referido conselho entre os meses de agosto de 2008 e dezembro de 2009, quando a atual proposta em debate ganhou consistência, sendo finalmente aprovada pelo CONDRAF em sua 40ª reunião ordinária realizada no mês de fevereiro de 2010.

A proposta aprovada para ser debatida com a sociedade durante o ano de 2011 estabelece um novo marco sobre o significado do rural, ao rejeitar a concepção dominante que o associa às atividades agrícolas e o trata como resíduo do mundo urbano. Nesta nova visão, o mundo rural é abordado a partir de seus três atributos básicos e simultâneos: como espaço de produção, espaço de relação com a natureza e espaço de reprodução de distintos modos de vida. Tendo presente essas três premissas, a PDBR busca construir as condições políticas necessárias para realizar uma profunda transição no modelo de desenvolvimento rural do país, consolidando a incorporação às políticas públicas de importantes segmentos sociais historicamente excluídos e, ao mesmo tempo, reordenando e priorizando as ações do Estado brasileiro.

Essa possibilidade aberta pelas proposições da PDBR leva em consideração o contexto atual do espaço rural do país, marcado pela dualidade de projetos de desenvolvimento. Assim, observa-se que em contraposição ao padrão histórico de desenvolvimento rural – representado pela concentração da terra e pelo domínio político das oligarquias agrárias – está em curso a construção de uma nova proposta fundada nas diferentes dimensões da sustentabilidade e ancorada nas distintas formas de produção e de reprodução da vida e organização dos atores sociais rurais.

Partindo do pressuposto de que o desenvolvimento rural não é sinônimo de urbanização do campo, mas da construção de uma visão multifacetada do desenvolvimento que busque a dinamização econômica dos municípios de bases rurais; a diversificação dos sistemas de produção; a preservação dos biomas e dos recursos naturais; a geração de oportunidades de ocupação e trabalho para que as famílias tenham condições de permanecer com dignidade nessas localidades, valorizando seus conhecimentos e suas culturas; e a garantia da segurança alimentar e nutricional, a proposta de política está assentada em uma nova concepção de rural que migra do enfoque setorial para uma abordagem territorial.

Para isso, a PDBR articula-se a partir de sete princípios centrais: democracia, sustentabilidade, inclusão, diversidade, soberania, igualdade e solidariedade, todos eles consubstanciados nas diretrizes estratégicas e nos eixos estruturantes de um projeto de desenvolvimento nacional. Esse conjunto de princípios orienta estrategicamente a política nacional, projetando os espaços rurais como locais de convivência econômica e social fundada no respeito às diferenças e no uso e conservação da natureza, de forma a preservar e melhorar a qualidade de vida da população atual e das gerações futuras.

Esses princípios gerais definem as diretrizes estratégicas que se encontram organizadas em quatro grandes temas agregadores. A primeira diretriz destaca a diversidade e a multifuncionalidade dos espaços rurais, reconhecendo que a diversidade do Brasil rural e a valorização da multifuncionalidade dos espaços configuram-se como ponto de partida de uma política pública que pretende promover uma estratégia nacional de desenvolvimento rural, particularmente em seu papel na formação social brasileira.

A segunda diretriz trata da dinamização econômica, das inovações tecnológicas e da sustentabilidade, como forma de rompimento com o padrão atual de desenvolvimento econômico dos espaços rurais brasileiro, propondo a construção de um modelo de produção agropecuária, extrativista, florestal e pesqueira que seja capaz de promover um processo de transição em direção a um padrão sustentável de uso e manejo dos recursos naturais e da biodiversidade.

A terceira diretriz geral diz respeito à qualidade de vida com inclusão social e igualdade de oportunidades, visando uma vida digna para as populações que habitam as áreas rurais. Para tanto, são necessárias políticas públicas que contribuam para a redução da pobreza e das desigualdades sociais, para a consolidação de mecanismos de inclusão social e para a promoção das igualdades de oportunidades.

A última diretriz discute o fortalecimento do Estado, o protagonismo dos atores e a gestão social como mecanismos da PDBR para fortalecer formas autônomas de organização da sociedade civil, bem como o protagonismo político e social, visando à criação de espaços democráticos de controle e gestão social das políticas públicas destinados à promoção do desenvolvimento.

A partir dos princípios e diretrizes gerais, a PDBR define um conjunto de eixos estruturantes que estabelecem as relações entre as diretrizes estratégicas e as ações específicas a serem implementadas pelas políticas e programas existentes ou a serem criados. Esses eixos devem ser compreendidos na sua inter-relação com o conjunto dos objetivos e das diretrizes estratégicas, sendo que um eixo dialoga e interage diretamente com mais de um objetivo e diretriz. Além disso, os eixos pressupõem a transversalidade de enfoques e de temas fundamentais como a abordagem territorial, a perspectiva de gênero, geração, raça e etnia, a noção de direitos, o papel da pesquisa científico-tecnológica e da educação e capacitação, bem como a democratização das estruturas do Estado.

No primeiro momento, foram definidos 12 eixos estratégicos e suas respectivas ações como sendo centrais para a construção da política nacional. São eles: reconhecimento e valorização dos espaços rurais; democratização do acesso aos recursos naturais e proteção da biodiversidade; preservação, uso e manejo sustentável dos biomas brasileiros; fortalecimento das economias rurais; reforma agrária e reconhecimento dos territórios étnicos e tradicionais para a democratização da terra; fortalecimento da agricultura familiar; soberania e segurança alimentar e nutricional; soberania e segurança energética; qualidade de vida; fortalecimento do protagonismo social e político; institucionalidades e gestão social; e preservação do patrimônio histórico e cultural. Para cada um desses eixos específicos a PDBR elenca de três a cinco estratégias com suas respectivas ações, como forma de dar um ordenamento adequado entre diretriz, estratégia e ações previstas.

Para que a PDBR tenha condições objetivas de ser implantada em todas as regiões e territórios rurais, três elementos são fundamentais: o arranjo institucional, o marco regulatório e o sistema de financiamento. No primeiro caso, à luz de diagnósticos sobre fragilidades institucionais atuais no processo de gestão social de políticas públicas, propõe-se aperfeiçoar todos os arranjos institucionais no sentido de superar a fragmentação das políticas, ampliar o espaço de proposição e formulação, aumentar o protagonismo social, garantir maior representatividade social nos espaços institucionais, articular e harmonizar as intervenções das distintas esferas de governo, e melhorar o funcionamento dos órgãos colegiados.

O marco regulatório legal da PDBR estabelece um conjunto de desafios ainda a serem vencidos, particularmente nos casos em que o marco jurídico-normativo que regula as políticas públicas para as áreas rurais continua atrelado às concepções do período do Estado Novo. Mesmo com os avanços observados após a Constituição de 1988 (leis agrária e agrícola, reconhecimento da profissão de agricultor familiar, direito aos benefícios previdenciários etc.), é necessário ampliar os processos institucionais capazes de instituir um novo marco legal.

Finalmente, para que a nova política tenha condições de ser executada, é imprescindível um sistema de financiamento adequado e sob responsabilidade do Estado brasileiro, devendo a União, em parcerias com as demais unidades federativas, disponibilizar os recursos financeiros necessários no tempo correto e em quantidades adequadas. Para isso, os mecanismos e instrumentos de financiamento do desenvolvimento rural deverão atender a múltiplas escalas de intervenção e contemplar as mais variadas dotações orçamentárias, tais como orçamentos do Governo Federal, fundos constitucionais, fundos específicos, programas regionais de crédito, além de recursos de um Fundo Nacional de Desenvolvimento Rural a ser discutido e aprovado pelo Congresso Nacional.

(*) Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).

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