O dever da elegância, a tentação do insulto e a manipulação dos fatos
*por Ricardo Berzoini
*por Ricardo Berzoini
Esforçando-se para manter a elegância e exibindo erudição, mas sem abrir mão de imprecisões, o ex-ministro Pedro Malan, no artigo “Heranças”, publicado no jornal o “Estado de São Paulo” de 9 de março último, recorre a Schopenhauer, Goethe, Goebels e Montaigne, para fazer uma tentativa de defesa do governo FHC.
Mérito para o ex-ministro que, mesmo quando se empenha em defender o indefensável, procura assumir um perfil moderado. Neste quesito, ele se diferencia completamente de muitos de seus pares que, freqüentemente, quando pensam que estão discutindo, simplesmente vociferam e insultam, como se a agressividade conferisse qualidade a seus pobres argumentos.
Certamente o ex-ministro cedeu à ira quando fez uma referência elíptica a Goebels, tentando aproximá-lo do presidente Lula. Este tipo de expediente, longe de desqualificar o presidente da República, depõe contra quem se utiliza dele. Na passagem em questão, certamente Pedro Malan se referia à famosa tirada, segundo a qual “uma mentira repetida mil vezes se transforma em verdade”.
Elio Gaspari, que faz oposição feroz ao PT e ao presidente Lula, porém mais astuto do que Pedro Malan, referindo-se ao mesmo sinistro personagem do nazismo, registrou no jornal “O Globo”, de 19 de março último: “Não há um novo Lula, o que há é uma nova conjuntura. Sua falação pode ser repetitiva, mas tem duas características. Primeiro, ele não está enrolando. Depois, leva para a rua uma agenda de progresso e otimismo, deixando para oposição o penoso exercício do mau humor. Se uma mentira repetida mil vezes acaba virando verdade, o que dizer de uma verdade repetida mil vezes?”.
Como se vê, Elio Gaspari é mais perspicaz do que Pedro Malan. Evita brigar com os fatos. Mas isso não esgota a questão. Por isso, vale ainda examinar de que lado está a mentira e quem realmente imita Goebels.
Com efeito, a certa altura do artigo, Pedro Malan se entusiasma com aquilo que julga serem as bondades da era FHC e se lança, não sem evidentes imprecisões, a uma longa enumeração: “... pense o leitor se não há algum significado no seguinte: quatorze anos de inflação civilizada, nove anos de regime de metas de inflação, nove anos de câmbio flutuante, oito anos de Lei de Responsabilidade Fiscal. Quinze anos de maior abertura comercial. Quinze anos do início dos processos de privatização. Quinze anos desde a renegociação da dívida externa do setor público. Quinze anos de maior integração financeira com o resto do mundo e desenvolvimento no mercado de capitais no Brasil. Uma década pós-saneamento do sistema bancário”.
Como foi acima citado, Pedro Malan fala de quatorze anos de inflação civilizada. Talvez tenha se esquecido que em 2002 a inflação alcançou 12,5%, o que está longe de ser uma taxa civilizada de inflação. E apontava seriamente para o descontrole quando o presidente Lula assumiu o governo. Este é o fato. O resto é amnésia cuidadosamente cultivada por certa imprensa cúmplice.
O regime de metas de inflação, criado por FHC a partir de 1.999, é engraçado. Ele estabelecia metas para um governo que, em geral, não as cumpria. Vejam o quadro abaixo:
Ano Meta Inflação (IPCA)
1999 8,0 8,9
2000 6,0 6,0
2001 4,0 7,7
2002 3,5 12,5
Como se vê, em quatro anos, a meta só foi alcançada uma vez. Nos demais anos, a inflação superou a meta, sendo que, em 2002, largamente. Não basta estabelecer metas, é preciso atingi-las, diria o Conselheiro Acácio.
O câmbio flutuante não devia ser reivindicado por nenhum membro do governo FHC, sob pena de ficar passível de ser acusado de desfaçatez. Pela boa e simples razão de que câmbio flutuante nunca foi política do governo FHC. A política daquele governo era o câmbio administrado até o limite da insensatez. O câmbio só se tornou flutuante na metade de janeiro de 1999, início do segundo mandato, depois que o Brasil quebrou. Não foi uma decisão de governo, foi uma imposição do mercado a um governo aos frangalhos. Antes, FHC já havia recebido um providencial socorro do FMI e tinha sido obrigado a demitir Gustavo Franco, do Banco Central, por excesso de zelo líbero-colonial. Em verdade, quem sabe disso é Bresser Pereira, ex-ministro de FHC, (Desenvolvimento e Crise no Brasil, Editora 34, pág. 362) que não hesitou em qualificar aquela política de populismo cambial.
A abertura comercial e o processo de privatização tampouco deviam constar de uma lista de realizações tucanas, já que a abertura comercial resultou em déficits comerciais constantes verificados de 1995 a 2000, registrando, apenas em 2001 e 2002, modestos superávits. Significativamente, a imprensa que conviveu durante cinco anos com déficits enormes, já se pinta para a guerra quando se verifica, nos dois primeiros meses deste ano, um déficit na balança comercial, ignorando que nos primeiros cinco anos do governo Lula o Brasil teve superávits comerciais expressivos que permitiram a geração de uma reserva cambial inédita e lhe assegura hoje condições de enfrentar com maior segurança as turbulências externas.
Por outro lado, se se toma em consideração que um dos objetivos das privatizações era reduzir a dívida pública, as privatizações não podem ser consideradas um sucesso. Com efeito, em janeiro de 1995, a dívida pública líquida representava 30,6% do PIB e, em dezembro de 2002, muitas privatizações depois, ela representava 55,5%. No governo FHC, a dívida pública cresceu 8,2% ao ano. Um desastre. Sob o presidente Lula, a relação dívida PIB foi reduzida para 42% e mantém trajetória declinante.
A responsabilidade fiscal não devia ser propagada em prosa e verso como suprema virtude. Ela é um dever elementar de qualquer gestor público. Nem isso tem impedido diversos entes da federação, inclusive a União sob gestão tucana, de tangenciar a bancarrota.
Aparentemente, o ex-ministro Pedro Malan atribui grande importância à renegociação da dívida externa, mas não fala sobre quantas vezes o Brasil voltou ao FMI, depois destas famosas renegociações. Realmente, o presidente Lula não renegociou dívidas. Ele se limitou a quitar os compromissos firmados por governos anteriores junto a órgãos multilaterais, no espírito da Carta aos Brasileiros. E seu governo criou uma situação tal que o Brasil (setor público e privado) deixou de ser devedor e passou a ser credor internacional. Sabemos que Pedro Malan e seus amigos em certa imprensa já condenaram o governo Lula. E sabemos também que a história, que não é feita apenas nas redações dos jornais, nem nas penas de aluguel, saberá fazer justiça ao governo do presidente Lula.
Em verdade, é possível suspeitar que Pedro Malan, como outros expoentes da direita, tenha se tornado portador de uma síndrome que antes se manifestara em Ronald Reagan e que assim foi descrita por Carl Sagan (O Mundo Assombrado pelos Demônios, Companhia das Letras, pág. 166):
“O presidente Ronald Reagan, que passou a Segunda Guerra Mundial em Hollywood, descrevia com detalhes como libertou vítimas dos campos de concentração nazistas. Vivendo no mundo do cinema, ele aparentemente confundia um filme que tinha visto com a realidade que não conhecera. Em muitas ocasiões, nas campanhas presidenciais, o sr. Reagan contou uma história épica de coragem e sacrifício da Segunda Guerra Mundial, uma inspiração para todos nós. Só que ela nunca aconteceu; era o enredo do filme A wing and a prayer (Uma asa e uma prece) – que também muito me impressionou, quando o vi com nove anos. Muitos outros exemplos desse tipo podem ser encontrados nas declarações públicas de Reagan. Não é difícil imaginar os sérios perigos públicos que nascem de ocasiões em que líderes religiosos, científicos, militares ou políticos são incapazes de distinguir os fatos da ficção vívida”.
As considerações acima alinhavadas e os números citados são irrefutáveis e deixam claro que, se tem alguém querendo adulterar a história, este alguém não está no campo do governo democrático e popular, mas no campo daqueles que, contando com a maioria dos meios de comunicação tentam desinformar e manipular a opinião pública. Até agora, sem sucesso.
*Ricardo Berzoini é presidente nacional do PT e deputado federal (SP).
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